Se você está minimamente ligado à gibisfera de alguma forma, acompanha as notícias pelo Instagram, Youtube e X/Twitter, deve saber que a pauta da tal “Amazon Dependência” voltou à tona depois que a Comic Boom promoveu um papo entre donos de comics shops mediado por Sidney Gusman e transmitido pelo canal do Youtube do Universo HQ.
Os canais do Fora do Plástico e do 2Quadrinhos repercutiram a live em seus noticiários semanais e, se o bate papo dos lojistas parecia ter passado despercebido, o domingo a noite e o início da semana pegaram fogo nas redes sociais com o debate entre os consumidores que defendem a Lei do Preço Fixo e os que são contra.
Antes de adentrar mais profundamente no nosso assunto principal, quero convidá-los novamente a ouvir o episódio do YellowTalk onde conversei com o Ronaldo Gillet, o Véio Nerd, e com o Carlos Pedroso, do Yellow Paper, sobre as políticas de promoções da Amazon e “o verdadeiro preço do quadrinho”:
Dadas a introdução acima, para ambientar você sobre a discussão, as pautas e as repercussões, vamos partir agora para o texto principal - que já antecipo a vocês que tem como único objetivo municiá-lo de informações para tornar o debate mais rico e mais embasado. Não temos intenção de defender ou atacar a lei, mas de ajudá-lo a enfrentar o senso comum e tomar o próprio lado baseado em fatos e dados.
Sobre o Projeto de Lei Nº 49 do Senado, de 2015
Bom, pelo título do projeto de lei já deu pra sacar que não é coisa nova. Proposto pela Senadora Fátima Bezerra do PT/RN, o Projeto de Lei, conhecido também como Lei Cortez ou Lei do Preço Fixo foi protocolado em 2015, um ano depois da Amazon começar a comercializar livros impressos no Brasil - já pensando em defender o comércio local das já conhecidas práticas agressivas da gigante de Seattle.
A proposta tramitou no Senado até 2019, quando sofreu um hiato por conta do fim do mandato da Senadora Fátima Bezerra, mas foi reintroduzido às pautas do legislativo em 2022 pela Senadora Teresa Leitão, do PT/PE, e deu alguns passos no final de 2023 e início de 2024 com a aprovação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), depois de atualizações decorrentes de uma audiência pública.
Agora, se não houver pedido de encaminhamento ao plenário, o projeto segue para a Câmara dos Deputados, onde dependerá do presidente da casa, o Deputado Arthur Lira (PP/AL), aceitar levá-lo ao plenário ou passar o projeto por novas comissões.
O que diz o projeto?
O capítulo I, que dispões sobre as diretrizes gerais, afirma que o objetivo do projeto é “garantir pluralidade de pontos de venda e maior disponibilidade do bem em todo o território nacional” além de “garantir igualdade de condições ao empreendedor livreiro” por meio de uma “fixação de preço de venda do livro ao consumidor final” e “permitindo o exercício da livre concorrência ao coibir o abuso de poder ecônomico, dominação de mercado, aumento arbitrário de lucros e a proteção do consumidor”.
Sobre a fixação de preço, o artigo 6º determina que o desconto que pode ser dado pelo comercializador (editora, livraria física ou on-line) ao consumidor final não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após o seu lançamento.
Ao final do texto base, a relatora justifica que “a fixação do preço de venda do livro ao consumidor final trará garantia ao mercado livreiro nacional da repressão à prática de dumping com escopo à dominação do mercado, práticas comerciais heterodoxas e destrutivas aos princípios da livre concorrência.
Concorrência, Monopólio e Dumping
Existem diversas formas de se praticar a concorrência dentro de um mercado: por preço, quando cada concorrente tem a liberdade de definir o preço que lhe convém e que convém à sua estrutura de custos; por qualidade, quando o seu produto tem mais ou menos qualidade que o do concorrente; durabilidade, disponibilidade, prazo, condições de pagamento e experiência, por exemplo.
Inclusive, desde que surgiu, a Amazon tinha como proposta de diferenciação competitiva o preço. No livro A Loja de Tudo, do jornalista Brad Stone, ele conta como, desde o início, a empresa americana adotou práticas extremamente agressivas de precificação para ganhar fatia de mercado. Só em 2009, quando adquiriu a Zappos - loja on-line de sapatos que ficou super conhecida nos EUA por sua política de “satisfação garantida” e por ser “a empresa mais feliz do mundo” - é que Bezos começou a olhar com bons olhos a experiência do cliente.
Quando o projeto de lei diz que quer garantir igualdade de condições ao livreiro para que ele concorra de forma livre no mercado, na prática o que eles querem dizer é que o alvo é a concorrência por preço, isto é, definem que durante o prazo de 12 meses todo mundo deve cobrar os mesmos valores, dando um fôlego aos pequenos lojistas. E se o preço é o mesmo, ganha o cliente quem proporcionar o melhor atendimento, a melhor entrega, o ambiente mais legal, a experiência como um todo.
Já a livre concorrência, que o projeto de lei afirma querer defender, é, em poucas palavras, derivada da livre iniciativa, que é o direito que qualquer pessoa tem de abrir o próprio negócio. A livre concorrência determina que as empresas podem concorrer entre si livremente, sem que uma empresa inviabilize a atuação de outra, como meio de favorecer-se.
Normalmente, a concorrência só é livre em estados de concorrência perfeita ou imperfeita, duas das quatro principais estruturas de mercado estabelecidas pelos princípios econômicos. São eles:
Concorrência perfeita: há um grande números de vendedores e um grande números de compradores, de modo que uma única empresa, isoladamente, não afeta o nível de oferta (quantidade de bens ofertados), nem tampouco o preço.
Concorrência imperfeita (ou monopolística): é uma situação de mercado entre a concorrência perfeita e o oligopólio - e que, na prática, corresponde à grande maioria das situações reais. Caracteriza-se pela possibilidade de os vendedores influenciarem a procura e os preços por vários meios (diferenciação dos produtos, publicidade e localização). Há um desequilíbrio entre as partes, ou seja, muitos vendedores para poucos compradores ou vice-versa.
Oligopólio: um mercado com um número reduzido de empresas, de tal forma que cada uma tem que considerar os comportamentos e as reações das outras quando toma decisões de mercado - o que pode gerar o surgimento de cartéis, ou seja, grupos organizados que combinam de adotar as mesmas práticas. Um oligopólio geralmente surge em momentos de crise, onde empresas fecham ou são absorvidas por outras maiores, que tornam-se ainda maiores e com grandes fatias do mercado.
Monopólio: na concepção tradicional, o monopólio existe quando há somente um único vendedor para determinado produtor, o que é raro, mas existe como no caso da Petrobrás ou das empresas de Energia Elétrica Residencial no Brasil. Entretanto, as ideias mais modernas sugerem que o monopólio pode referir-se ao caso em que apenas uma empresa tem poder de mercado, ou seja, capacidade de influenciar preços neste mercado.
O monopólio geralmente nasce quando uma empresa adquire a qualidade de única produtora ou distribuidora de um produto, seja por meio de uma patente registrada, por meio de uma política governamental (os Correios, por exemplo) ou por medidas artificiais como licitações e concessões (pedágios em rodovias privatizadas).
Entretanto, uma empresa também pode pavimentar o caminho para um oligopólio ou monopólio através de práticas desleais como a formação de cartéis, trustes e da prática de dumping - todas proibidas no Brasil e na maioria das países democráticos.
Por sua vez, o dumping é uma prática comercial predatória que consiste na negociação de produtos, mercadorias ou serviços por preços extraordinariamente abaixo de seu valor justo, muitas vezes abaixo do valor de custo, visando prejudicar ou eliminar os concorrentes de produtos similares, que não tem força para competir e acabam declarando falência - o que permite a empresa dominar o mercado e impor preços altos em seguida.
Como a Amazon exerce seu poder de mercado?
Estima-se que o varejo da Amazon fature algo em torno de 28 bilhões de dólares por ano com a venda de livros ao redor do mundo. Isso é cerca de 10% do faturamento anual da varejista e apenas metade do que ela fatura com a AWS - o braço de tecnologia - que arrecada 54 bilhões por ano.
Ainda assim, esses números são resultado da venda de 300 milhões de livros impressos por ano e 487 milhões de unidades digitais para Kindle, com 40% de fatia de mercado nos Estados Unidos (80% se considerar o marketplace) - que pode chegar a 70% até o final de 2025 - e 50% do mercado britânico.
No Brasil, a pesquisa da Nielsen IQ - líder global de inteligência sobre o consumidor - revelou que 55% dos leitores costuma comprar livros de forma on-line e 66% destes disseram que a Amazon foi o local de sua última compra, contra 6,8% do Mercado Livre e 4,4% da Shopee, que completam o pódio.
Apenas a título de comparação, os leitores que afirmaram comprar de forma presencial distribuem-se entre a Leitura (24%), a Saraiva (20%) e livrarias de bairro (19%) - uma discrepância muito menor entre a concorrência.
Ainda sobre as pessoas que afirmaram preferir comprar de forma on-line, 43,5% afirmam fazê-lo por achar melhores preços e promoções - e é ai que entra o grande poder da Amazon.
A gigante americana conseguiu conquistar rapidamente o mercado brasileiro, e de qualquer outro país onde atua, por atacar diretamente a cultura de consumo local, mas que só foi possível por que ela tem muito, mas muito dinheiro pra investir.
Como seus recursos financeiros não são nada escassos, a empresa de Jeff Bezos consegue comprar grandes quantidades de livros e com preços melhores por oferecer às editoras melhores condições, como prazo de pagamento, e a certeza de que não vão tomar um calote - o grande mal que ronda as livrarias que adotam o sistema de consignação.
Essas melhores condições permitem, então, à Amazon a controlar a cultura de consumo com suas promoções recorrentes (Prime Day, Dia do Consumidor, Black Friday, Book Friday) com descontos que variam entre 50 e 70% e que muitas vezes beiram os 80% do preço de capa - abaixo até do preço de custo, coisa que só a varejista conseguiria fazer. Sem esquecer, claro, dos tradicionais 30% de desconto sobre a pré-venda de algumas editoras, que cativa e prende o leitor.
Somando isso ao fato de ter frete grátis para o Brasil inteiro por meio da assinatura prime, a empresa vai tornando o leitor acostumado a comprar somente em seu site, enquanto pratica o que muitos acusam de dumping.
O ação é tão nociva que não é raro ver leitores reclamando nas redes sociais hoje em dia quando o desconto de um livro não passa dos 50%. Inclusive, tem surgido um movimento entre os leitores de “não compre no lançamento, compre daqui há 3 meses que a Amazon queima estoque”. Tem até meme disso:
Além das promoções agressivas, a Amazon consegue exercer também um soft power - como disse a Mariana do Fora do Plástico - através dos influenciadores e seu programa de afiliados, comissionando um valor médio de 10% da venda que for feita através do link do canal.
Soma-se tudo isso ao fator de termos pouca transparência no mercado editorial sobre dados como tiragens e estoque mais o discurso de “compre agora que vai esgotar”, surge então um sentimento imediatista do leitor: “preciso comprar esse livro agora porque não sei quando vai esgotar e se esgotar vai demorar ou nunca vão reimprimir” e “não sei quando vai chegar nesse preço de novo”. O resultado são estantes abarrotadas, pilhas de leituras enormes e livros que talvez nunca serão lidos.
A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir. Arthur Schopenhauer.
Sendo assim, colocando na balança todas as variáveis comentadas acima, temos a seguinte situação:
Ganho crescente de fatias de mercado por meio de promoções agressivas e pré-vendas com desconto que não podem ser equiparadas por pequenos lojistas que não tem as mesmas condições financeiras;
Muda a cultura de consumo tornando o leitor dependente de seus preços super baixos, além de criar um senso de urgência e de necessidade que não necessariamente é verdadeiro;
Com fatias de mercado cada vez maiores, torna as editoras reféns de suas condições, visto que é, de longe, a maior cliente destas casas (a Pipoca & Nanquim, por exemplo, afirma que hoje 55% de suas vendas é para a Amazon, mas o número já chegou a 80%);
As pequenas lojas ficam insustentáveis e acabam fechado, por não conseguirem competir;
Sem pequenas lojas, os leitores tornam-se mais dependentes;
Com leitores mais dependentes, as editoras tornam-se mais dependentes;
E assim o ciclo gira;
Consegue entender o padrão? Estamos, talvez, diante da construção de uma situação monopolística que se tornará irreversível em poucos anos.
A Associação Nacional de Livrarias (ANL) divulgou em 2021 que o número de livrarias no Brasil era de 2.200, contra 3.095 em 2014 - ano que a Amazon começou a operar no país. A UNESCO considera que o número ideal é de 1 livraria para cada 10 mil habitantes e aqui temos 1 a cada 96 mil. Precisaríamos ter 20 mil livrarias no Brasil para atingir o número considerado ótimo - mas ao invés de crescer, perdemos uma livraria a cada 3 dias, em média.
Se estamos caminhando para um monopólio, então é preciso entender como é formado o preço de um livro e como essa situação pode afetar o cenário nacional já que uma vez estando nessa estrutura de mercado, a varejista americana - assim como outras empresas que consolidam um monopólio - deve mudar suas estratégias de compra e venda, estando com a faca e o queijo na mão.
Formação de Preço de Venda (ou como um monopólio pode afetar o mercado nacional)
Vamos começar essa parte tirando algumas afirmações de senso comum de cima da mesa. Imaginemos agora que o Além dos Quadrinhos abriu uma editora e vai publicar o seu primeiro gibi licenciado.
Fizemos alguns orçamentos com uma gráfica para analisar o comportamento do preço de custo de um quadrinho sob a ótica do seu acabamento gráfico e entender se é verdade a afirmação de que “capa dura e verniz localizado é que encarece o produto”.
As características base do nosso produto serão o formato (A4, 21 x 29,7 cm) e 336 páginas. Essas informações não vão se alterar. A ideia é tentar emular o preço de uma Epic Collection da Marvel, publicada pela Panini.
As variáveis serão Cor (P&B ou Colorido), Gramatura do Papel, Acabamento da Capa e Verniz.
Cenário 1: miolo P&B em offset 90g, capa em couché fosco 170g, sem orelhas e com laminação brilhosa
A primeira informação que podemos tirar desse orçamento é que a tiragem é um fator importantíssimo na formação do custo. Uma editora pequena que imprime 500 unidades do gibi tem que pagar R$ 92,44 por cada unidade, enquanto uma editora grande/média que consegue 5 mil cópias paga somente R$ 35,88 por cada, 62% a menos.
A partir daqui, vamos levar em consideração que a Editora Além dos Quadrinhos tem uma grande expectativa sobre o seu título e vai apostar na tiragem de 5 mil cópias. Dessa forma, o preço que teremos como base para comparar os próximos cenários é de R$ 35,88.
Cenário 2: miolo P&B em offset 90g, capa em cartão 300g, sem orelhas e com laminação brilhosa
Com a expectativa de altas vendas, trocamos o material da capa para o papel cartão 300g, que é mais luxuoso em comparação ao couché 170g. Para você ter uma noção, é como comparar uma mensal com uma saga.
Veja que o preço alterou para R$ 36,46 - apenas R$ 0,58 acima do nosso preço inicial. Então vamos ver como fica se a gente adicionar orelhas de 12cm nessa configuração:
A gráfica manteve o mesmo preço com orelha - o que é ótimo, pois a orelha confere mais luxo e mais segurança à integridade da capa do gibi.
Já que a capa vai estar mais luxuosa, que tal adicionar um verniz localizado?
Nosso custo unitário sobe para R$ 37,54 - ou seja, o verniz localizado adicionaria um custo de R$ 1,08 por gibi, considerando o atual cenário.
Cenário 3: miolo P&B em couché fosco 115g, capa em cartão 300g, com orelhas de 12 cm e com laminação fosca e verniz localizado
Dando seguimento ao nosso orçamento anterior, tivemos a ideia de deixar o miolo mais luxuoso também, alterando o papel de offset 90g para couché fosco 115g. Mantivemos o verniz localizado, as orelhas e a capa cartão. Esse foi o resultado:
A alteração do papel aumentou R$ 18,18 no nosso custo, para um valor de R$ 55,72 por unidade.
Já que apostamos no couché fosco, que tal testar agora um gibi colorido, ao invés de preto e branco?
Cenário 4: miolo colorido em couché fosco 115g, capa em cartão 300g, com orelhas de 12 cm e com laminação fosca e verniz localizado
Bom, neste cenário, a gráfica manteve o mesmo preço para o gibi colorido. Isso não quer dizer que será sempre assim e que colorido ou preto e branco não altera o valor. No nosso cenário alterou, sim, mas precisaríamos fazer mais simulações.
Então vamos ao resumo:
O gibi basicão custaria R$ 35,88;
Melhorando a capa para cartão 300g ao invés de couché 190g R$ 0,58;
Adicionando orelha de 12cm o preço se mantém o mesmo;
Trocando o papel para couché fosco 115g ao invés de offset 90g, o preço sobe R$ 18,18;
Impressão colorida ao invés de P&B não teve alteração de preço.
Dessa forma, nosso gibi saiu de R$ 35,88 para R$ 55,72 de custo. Vamos seguir com essa configuração para simular agora as condições de venda.
Simulações de Venda e Revenda
Vamos estabelecer algumas premissas:
O custo com diagramação e letras, edição, tradução, revisão, preparação de texto e design de projeto gráfico foi de R$ 12.000 - pois contratamos os melhores profissionais do mercado. Como vamos imprimir 5.000 livros, diluímos esse custo para R$ 2,4 por unidade.
Apesar de os livros terem impostos como PIS/PASEP e Cofins zerados, ainda precisamos considerar um valor de 2,28% sobre faturamento (info retirada da planilha fornecida pelo curso A Vida do Livro, da Seiva).
Contratualmente, definimos 10% como percentual de direitos autorais que devem ser pagos ao autor sobre o preço de capa de cada livro vendido.
Por fim, a Editora Além dos Quadrinhos definiu como política uma margem de 50% sobre o preço de custo do livro, que deve ficar dentro do caixa da empresa. Sendo assim, como o livro custa R$ 58,12 (R$ 55,72 da impressão + R$ 2,4 dos serviços de edição), R$ 29,06 deve ser a fatia do bolo que fica com a editora.
Cenário 1: a editora vende somente pelo seu site próprio
A Editora AdQ não firmou nenhum contrato de parceria comercial no momento, venderá apenas pelo próprio site, adicionando uma comissão de 4,99% da plataforma de e-commerce.
Sendo assim, podemos definir o preço de capa do livro da seguinte forma:
O preço de capa do quadrinho será de R$ 105,38, suficiente para pagar todos os custos variáveis, o custo de impressão e edição e lucrar os R$ 29,06 que havia sido definido pela como política pela editora.
Entretanto, observe que, caso a editora deseje dar algum desconto promocional, o valor de desconto será subtraído da margem da editora, pois não há qualquer outra margem definida. Ou seja, se a editora quiser dar 30% de desconto (R$ 31,61) na pré-venda, teria um prejuízo de 26 centavos por livro vendido.
Cenário 2: a editora vende para lojistas e pode dar desconto de até 30%
Pensando nisso, a Editora AdQ adicionou 30% de margem de desconto em seu orçamento, que será usado tanto para dar descontos de pré-vendas quanto para vender para lojistas interessados.
O preço de capa passa a ser então de R$ 151,04 - para ter margem de oferecer até 30% de desconto sobre o preço de capa, além de poder vender para lojistas parceiros pelo mesmo valor.
Caso venda para clientes ou lojistas com os 30% (margem de lucro deles), continuamos recebendo nossa margem de R$ 29,06 por livro vendido. E cada livro vendido pelo preço de capa ou por descontos menores (10% ou 20%) aumentaria a margem da editora.
Cenário 3: a editora vende para distribuidoras
A quantidade de lojistas interessados no lançamento é enorme. Comics shops espalhadas por todo o Brasil querem adquirir o livro, mas nós não temos verba suficiente no momento para contratar um funcionário totalmente dedicado a essas vendas e envios para parceiros.
Desta forma, contratamos uma distribuidora de livros que cobra 20% de comissão, mas vai ficar responsável por receber e enviar os livros para todo o Brasil - além, claro, de dar mais segurança à saúde financeira da editora (evitando calote), pois eles que serão responsáveis por pagar os livros, e não as livrarias.
Pensando em adicionar tanto a margem da distribuidora (20%) quanto a do lojista parceiro, fizemos uma nova tabela de precificação:
Com a distribuidora na jogada e seus 20% de margem, nosso quadrinho passa a custar R$ 231,12 centavos. Com isso, podemos pagar todos os custos variáveis, os custos de impressão e edição e manter a nossa margem de R$ 29,06 por livro.
Tá ficando caro…
Cenário 4: a editora vende para a Amazon
A Amazon entrou na jogada. Com seu poderio financeiro, a gigante varejista prometeu comprar metade da nossa tiragem e pagar em 30 e 60 dias, caso ofereçamos condições melhores para eles. Oferecemos 60% e eles toparam. Voltamos então para a nossa tabela de formação de preço:
Observe que mesmo dando apenas 10% de desconto a mais para a Amazon em comparação com o que oferecemos ao esquema lojista + distribuidora, o preço de capa sobe para R$ 314,50.
Isso acontece por que ao adicionar mais 10% de desconto, temos que levar em consideração que os direitos autorais e outros custos variáveis sobem também. Os 10% a mais dados para a Amazon resultaram em um aumento de 36% em relação ao cenário onde vendemos para as distribuidoras.
Caso a varejista americana quisesse um desconto ainda maior, de 70%, o preço de capa seria de R$ 491,99 - mais de 100% de aumento em relação ao cenário das distribuidoras e 56% a mais que os R$ 314,50 do cenário que oferecemos apenas 10% para eles.
Levando em consideração que a Amazon compra com 60% do cenário anterior, eles tem margem para fazer promoções de até 60% em sua plataforma - aqueles que vemos uma vez por mês, pelo menos. E ela não tem puder de oferecer mais, 70 ou 75% algumas vezes, já que uma vez na plataforma, mesmo com prejuízo naquele livro específico, o cliente acaba levando outro item para aproveitar a mesma entrega e o carrinho, como um todo, acaba sendo lucrativo para eles.
Em contrapartida, os termos de contrato com as distribuidoras e lojistas não mudaram. Continuamos vendendo com 50% para as distribuidoras (10% que sobra vai para a margem da editora) que vende com 30% para o lojista - que vai poder vender o livro com no máximo 30% de desconto sem ter prejuízo.
Cenário 5: maior tiragem
Mas vamos pensar no leitor agora. Esse livro ficou extremamente caro - mais caro que um omnibus. Nesse cenário, temos apenas 2 formas de abaixar o preço de capa sem mudar os termos das parcerias comerciais: maior tiragem e menor margem da editora.
Digamos que a gráfica nos informou que em uma tiragem de 10 mil exemplares o preço unitário cai para R$ 37,88. Mirando ainda uma margem de 50% sobre o custo, é necessário sobrar R$ 18,94 para a editora:
Mantemos os 60% de desconto para a Amazon, mas como temos uma tiragem maior e mais barata, o preço sai de R$ 314,50 para R$ 204,98. Indo além, em vez de uma margem de 50%, a editora almeja agora uma margem de 25% - a fim de baratear para o leitor:
Nosso preço final é de R$ 170,82.
Cenário 5: se a Lei Cortez funcionar
Imaginemos agora um Brasil onde a Lei Cortez foi aprovada.
Nenhum lojista ou livreiro poderá vender o quadrinho com mais de 10% de desconto sobre o preço de capa em seu primeiro ano de publicação.
Desta forma, a Amazon também é impedida de oferecer seus 30% de pré-venda e suas promoções agressivas de 60% de um quadrinho que foi lançado há 3 meses. Sendo assim, a empresa americana pode passar a comprar menos e perder suas condições especiais junto às editoras.
A editora passa então a oferecer 40% para a varejista e o mesmo desconto iria para as distribuidoras (que repassariam a 20% pros livreiros).
Ao invés de R$ 170,82 do cenário anterior, nossa HQ seria vendida a R$ 99,22 centavos a preço de capa.
Claro que no primeiro ano ela só poderia chegar a no máximo a R$ 89,30 - com os 10% previsto pela lei.
No cenário anterior, sim, a Amazon poderia vender com 30% na pré-venda ou 40% nos 4 meses posteriores. Mas 50% seriam R$ 102,49. E, afinal, é melhor pagar menos ou ter mais % de desconto? 10% de desconto e pagar R$ 89 ou é melhor dizer que pagou enormes 40%, mas que no final saiu por R$ 102?
Sim, claro que a Amazon comprando menos pode significar menores tiragens para as editoras e, como vimos, menores tiragens significam preços maiores. Mas também pode significar livreiros mais empolgados com uma disputa justa e comprando mais que os 15 ou 20 livros que compram atualmente, não concorda? Além do surgimento de novos livreiros. Perde-se volume vendido para a Amazon, ganha-se volume vendido para livreiros que agora podem focar em experiências melhores, ao invés de uma batalha sangrenta por preço. Um seis por meia dúzia muito benéfico para o leitor.
E esse volume perdido pode também ser recuperado pelas editoras vendendo em seus próprios sites. Várias editoras não possuem site próprio e outras até possuem, mas como uma experiência de navegação horrível e confusa e níveis de serviços duvidosos. Eu mesmo comprei um quadrinho em dezembro de 2023 no site de uma editora e ainda hoje não foi enviado… já cobrei várias vezes.
Por isso, precisamos falar sobre como fazer as coisas funcionares.
Resultados da Lei do Preço Fixo no mundo afora
Uma pesquisa feita pela Associação Comercial da Industria Editorial Alemã aponta alguns números promissores sobre a adoção de uma política de preço fixo.
Segundo eles, o Reino Unido viu uma queda de 12% no número de livrarias após a abolição da Lei do Preço Fixo entre 1995 e 2001, enquanto a Alemanha, que manteve a Lei, perdeu apenas 3% no mesmo período.
Olhando para a concentração de mercado, a Amazon detém 50% do fatia de vendas de livros no Reino Unido, enquanto na Alemanha essa fatia é de 20% das vendas, enquanto 30% é gerado por livrarias independentes e 20% por cadeias de lojas.
O estudo ainda afirma que quando uma livraria fecha, parte da clientela é perdida, sem migrar para comércio online ou para livros eletrônicos. Foram vendidos 3,5 milhões de livros a menos entre 2014 e 2017 (2% de queda) por conta do fechamento de livrarias, e a queda poderia ter sido 56% menor caso a quantidade de lojas tivesse continuado a mesma.
O relatório conclui que o sistema de preço fixo contribuiu para a preservação de uma estrutura abrangente de livrarias, aumento na procura e vendas de livros, melhorias nos serviços prestados, preços médios mais baixos e melhoria de acesso ao mercado para pequenas editoras e autores novatos.
Na mesma linha, o artigo Empirical Effects of Resale Price Maintenance: Evidence from Fixed Book Price Policies in Europe (Efeitos empíricos da manutenção do preço de revenda: Evidências de políticas de preços fixos de livros na Europa) de Rhys J. Williams, Doutor e estudante de Pós-Doutorado em Economia pela Universidade Cambridge, apresenta diversos evidências de melhorias ocasionadas por políticas semelhantes na Europa.
Segundo Williams, de maneira geral, as políticas de Preço Fixo resultaram em um maior volume de vendas de livros em comparação a paises que não adotaram as políticas. E mesmo em cenários de crise, onde as vendas caíram de forma generalizada, as quedas foram menores em países que adotaram versus países que não adotaram as medidas.
No tocante ao preço médio de livros, o estudo observou novamente um resultado positivo: nos países que adotaram políticas de Preço Fixo, o preço médio do livro tende a ser inferior que nos países que não adotaram. E, novamente, em momentos de crise, alta de inflação e desemprego, os preços sobem mais lentamente. No calculo apresentado, o preço de livros cresce 6,9% mais lento nos países adotantes em comparação com os não adotantes.
O pesquisador ainda explica que as Políticas de Preço Fixo desencorajam a concorrência feroz por preços, o que resulta em uma redução do fechamento de livrarias. Consequentemente, com uma ampla variedade de livreiros para vender, o poder das editoras é aumentado e elas reduzem a participação (comissão) de varejistas (conforme falei no final do nosso tópico de precificação) e reduzindo ainda o preço final para o consumidor.
Apesar de receberem uma comissão mais baixa, os varejistas existentes se beneficiam de uma maior quantidade de livros disponíveis para a venda - decorrente de preços mais baixos - o que pode aumentar seus lucros por volume, e não pode unidade.
Com um cenário mais otimista, mais empreendedores são encorajados a abrir novas livrarias, com mais concorrência, mais poder para a editora, menor preço e assim sucessivamente.
Receita do sucesso?
Depois de apresentados os fatos e dados acima, gostaríamos de deixar nossa contribuição com algumas sugestões que acreditamos ser pertinentes em caso de aprovação da lei.
Vamos mudar essa história de uma cultura de consumo imediatista e desenfreada. Lá em cima citamos a falta de transparência das editoras que gera o constante receio de determinado livro esgotar e você ficar sem sua unidade. Nisso, mas não só nisso, temos que elogiar a JBraga que vem adotando uma política de informar a tiragem de seus livros e a quantidade disponível em estoque, permitindo que o leitor se planeje bem antes de comprar seu livro, sem necessidade de compras impulsivas com medo da obra esgotar:
Se o influenciador de quadrinhos é refém do “soft power” do programa de afiliados da Amazon, é por falta de alternativas. Poucas lojas, como a Mundos Infinitos, tem um programa de afiliados próprio. E das editoras, me lembro somente da Panini. Ao invés de pagar uma grande quantia para apenas um influenciador divulgar a sua loja ou editora, se beneficie da capilaridade de vários pequenos influenciadores. Quanto mais gente falando de você e divulgando seu link, melhor. E editora, ao invés de só enviar o livro para resenha, que tal começar a criar programas de afiliados para os influenciadores também? Ou apoiar financeiramente os pequenos produtores de conteúdo para incentivar uma maior diversidade em detrimento de um cenário concentrado e 3 ou 4 páginas?
É preciso também desenvolver um senso de comunidade na gibisfera e na booksfera. A coisa não funciona se nós consideramos o amigo do lado como um concorrente. O papel do influenciador é - acima de tudo - espalhar a palavra da leitura e consequentemente formar novos leitores. Precisamos de novos leitores para gerar demanda e maiores tiragens (lembra que a tiragem é crucial no preço do produto?). Se continuarmos agindo como estamos hoje, com intrigas, boicotes e “minha página é melhor que a sua” não vai dar certo. Não mesmo.
Se a ideia é eliminar a concorrência por preço, vamos investir mais na experiência. Eventos como lançamentos e sessões de autógrafos são muito importantes para o cenário e para o sucesso de um livro. Mas o sucesso da sua loja passa também pelo virtual. Entregar no prazo e entregar correto é o mínimo. Vamos investir também em usabilidade dos sites e disponibilidade de produtos… Nada de comprar e não ser enviado ou ser enviado errado. Ou pior, nem ter aquele produto super desejado em estoque…
Por falar em entrega, concordo com o Bruno Zago quando disse que seria importante os Correios criarem uma nova modalidade de entrega para livros. O módico, apesar de barato, só aceita 2kg. Hoje em dia, 3 ou 4 livros já estoura a cota - se não tiver nenhum omnibus. Uma cota maior e ainda mais barata (subsidiada pelo governo, quem sabe?) ajudaria os pequenos lojistas a concorrer contra o frete grátis da Amazon.
Vamos esquecer esse negócio de consignação. Esse sistema totalmente antiquado já fez várias editoras vítimas no Brasil. Ao invés de pegarem 50 livros em consignação, pega 10, vende, pega mais 10… Consignação é a casa da inadimplência e a inadimplência é preço, isto é, as editoras vão precisar calcular um % previsto de INAD e colocar no preço de capa. Ai não adianta Lei do Preço Fixo.
O capítulo III da Lei Cortez fala sobre os deveres do Poder Executivo na promoção do acesso ao livro e incentivos à leitura. Não adianta só falar bonito na lei e não cumprir. Mais bibliotecas, como disse o Érico Assis, mais espaço para quadrinhos no PROAC e na Lei Paulo Gustavo (e em outras) e tudo mais que está no capítulo:
Catarse. A lei não pode esquecer o Catarse - o espaço onde mais surgem novos quadrinistas e escritores. O financiamento coletivo de livros tem que ser levado em consideração para não meter um tiro no pé dessa galera.
Eu ACHO que gibi nacional podia furar a bolha da lei e poder ter uns 20% no primeiro ano para incentivar nosso cenário…
Feiras de Livro promovidas por universidades públicas poderiam aplicar também de 20 a 30% do preço em lançamentos (os não lançamentos não se aplicam à lei);
Conclusão
No quadrinho Um Inimigo do Povo - que eu já falei diversas vezes como eu amei e como foi a melhor leitura de 2023 para mim - a gente acompanha o Dr. Thomas Stockmann em sua empreitada para embargar um balneário público que está contaminado por bactérias nocivas e deixando a população doente.
Acontece que o mesmo Dr. Stockmann foi quem projetou o balneário e teve que fazer algumas concessões no projeto para agradar alguns investidores - inclusive o poder público - e passar o encanamento por baixo de um lixão, para acelerar a obra.
Na intenção de fechar o balneário, que traz muitos turistas à cidade e, consequentemente, movimenta a economia local, o protagonista sai de uma posição de Amigo para Inimigo do Povo.
Enquanto toda a obra se desenrola, a sua filha, que é professora do fundamental de uma escola local, vive sendo repreendida pelo diretor por “ensinar coisas inúteis” como política e senso crítico às crianças, que deveriam focar apenas em estudar matemática, biologia e outras matérias escolares.
Em uma cena muito sutil, vemos a filha do Dr. Stockmann preparando a aula para o dia seguinte e o livro “A Utilidade do Inútil” do filósofo italiano Nuccio Ordine na sua cabeceira:
O detalhe, que pode passar despercebido junto com a ovelha desgarrada, mostra-se essencial para interpretar o final do quadrinho.
“No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é mais fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte”, disse Ordine.
Levando a fala de Ordine e o final do quadrinho em consideração, o que podemos concluir é que às vezes podemos nos deparar com algumas discussões que parecem uma sinuca de bico ou uma disputa política de ideais, mas é apenas em posse daquilo que parece inútil, é que podemos enfrentar tais cenários.
E é esse o papel da professora com seus alunos. Enquanto a disputa entre o Dr. Stockmann e o Prefeito parece não ter fim ou, pior, parece se encerrar para o lado do prefeito, é somente educando uma nova geração, munida do “inútil”, que podemos vislumbrar novos ares.
A discussão sobre a Lei do Preço fixo parece ser inútil, parece que não vamos ter nenhum papel ou influência sobre isso, e eu não poderia discordar de forma mais veemente. É sabendo sobre a lei, sobre suas consequências e sobre o mercado, que poderemos mudar o jogo a nosso favor.
Sei que falamos muito, talvez divagado muito também, mas nossa única intenção é a de proteger e espalhar a palavra da nossa querida gibisfera, que tanto amamos.
Agradecemos você que chegou até aqui e gastou um baita tempo lendo todo esse textão. Saiba que apreciamos cada segundo que você gastou conosco e isso é refletido nesse texto que demorou mais de uma semana pra ser escrito - sem contar o tempo de pesquisa.
Se você concordou ou discordou de algo que foi dito, você tem o total direito e liberdade de comentar, compartilhar ou chamar a gente em qualquer rede social para conversar mais a respeito. Estamos à disposição.
Um forte abraço e até a próxima!
Texto excelente...
Totalmente a favor da lei do preço fixo, além do que a quantidade de livros e quadrinhos lançados nos anos anteriores é grande, quantos porcento dos livros no mercado iam cair nessa lei?